segunda-feira, 24 de março de 2003

Ante a trémula fluorescência de uma vela,
as sombras projectadas na parede
mistura inóqua
dos corpos abandonados
à fina cadência
do murmúrio contido
as silhuetas enleadas
perfume de esgar apaixonado,
o pavio consome-se,
por momentos
tudo cessa,
nessa sucessão de pontos
amálgama de nós
duas consciências diluídas onde não lhes chegamos.

Ante a trémula fluorescência de uma vela,
só o vislumbre da linha disforme, no enleio que desenhamos,
se afigura como a possível ténue projecção do rio de lava,
que constitui a nossa génese.


Confio no que sei que vai fluir,
no mar que sei que sangra em mim
e te manchará, de gotas,
mais depressa que a fome
acontece magia,
a chama, essa, arde
não sabemos, nem queremos
quando parar ante este esplendor,
para além de cores e matizes.

Deixa-a arder!!!

Eventualmente há-de parar,
mas qual partícula fundamental
alimenta-se de tudo
e o braço do rio cresce, invadindo tudo sem piedade.

Mais quietos que a trémula fluorescência da vela,
somos a amálgama que resulta da matéria envolvente
e existimos nesse crepúsculo.

XXIV/III/MMIII

Tomaz

domingo, 9 de março de 2003

Túmulos Geométricos

Túmulos Geómetricos


O túmulo geométrico
não é senão
a nave do tempo
apontada às estrelas,
luzes cercadas de infinito.
O lento trote de segundos imemoriais,
transportam o deus menino
recolhido na noite estelar.
A lógica dos números
que vislumbramos caos,
aos nossos olhos,
massa cinzenta,
nosso julgar
e um mar, espaço exterior
que adivinhamos.
O azul, o negro.
O pó, coisa de todas as coisas,
onde a energia pura, se move crepuscularmente.
Atrás da porta, o postigo onde assomamos.
As perguntas são como horizonte longíquo,
não cessam,
não o alcançamos.
Sonhamos, navegamos, voamos
em túmulos geométricos.

Tomaz
VI/II/MM

sábado, 8 de março de 2003

Piano

Notas à volta no ar, o piano percutido com a força que vem do interior. Como é fácil enlear-me nos brancos e nos negros do teclado. A textura das cordas ressoa, sinto-a a desafiar os sentidos. Como é fácil deixar-me comover com as lágrimas que escorrem dos dedos que se agitam reflectidos no espelho verniz da madeira do Bosendorfer.
De quando em vez o pé acerta o soalho no mesmo tempo do compasso. Sala vazia. Cadeiras arrumadas. Esta noite ficará cheia e as melodias entrarão nos ouvidos de cada um. Desenhos e histórias desenhar-se-ão na imaginação. O ar sugado pelos seres dispostos lado a lado, os olhos fixos no perfil sentado, seguirão as tuas mãos travessas. O encantamento encherá os corações de todos quanto se deixarem invadir pela espessura das pautas inventadas no momento.
Perfeita a noite, fria, atrás das enormes portas de madeira, pesadas, que acolherão os sons que soltas de cabeça pendida, corpo suado e diluído na magia das palavras encadeadas que gritas ao piano.
Escalas e notas, destilam a perda e as matizes nocturnas da tua solidão. Grita, solta a voz e as entranhas, assim, assim...devagarinho e depois violentamente, como as mil pragas de mil tempestades desta vida maldita. Invade-nos com a tua água. De rios rápidos e tranquilos, sinuosos. Límpidos e frescos. Puros.
Um último sopro, terminas o tema, como o começaste, à procura, não é o fim nem o início. Termina apenas. Ali. Aqui. Na noite, um pianíssimo tão perto do silêncio quanto possível, como se se pudesse tocar o piano só em silêncios. Como é fácil o teu silêncio.

Tomaz

vertigo1973@hotmail.com